segunda-feira, 18 de julho de 2011

A estrada para Kabul

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A estrada-rua é uma coisa mal amada pela mesma razão de muitas outras coisas cuja identidade é flutuante, não encontrando estabilidade por aquilo que é mas sim pelo que deixou de ser ou ainda não é. É como um híbrido. De uma mula é fácil dizer-se que tem o pior do cavalo e do burro e que é estéril. Outros dirão que terá o melhor de uma burra e de uma égua. Coitada da mula e da sua indefinição identitária.
A estrada rua é o elemento mais banal das formas e processos de urbanização em Portugal, nos antípodas de qualquer ideal-tipo do que seja a boa e verdadeira genuína cidade. Não vale a pena apostar tudo na idolatria da cidade histórica, no trauma de se ter perdido isto e aquilo e, desse trauma que ficou do rol das perdas, já não se ter discernimento sequer para avaliar se aquilo ainda é uma cidade ou se é um simulacro cénico limpinho e abrilhantado para mais um parque temático com programação contínua para o negócio turístico. Assim está a ficar Óbidos. Não há problema. As cidades também se prestam para isso mas não devem ser só isso.
A passagem da cidade para o urbano arrastou uma metamorfose profunda da cidade: de centrípeta passou a centrífuga; de limitada e contida, passou a uma coisa desconfinada; de coesa e contínua, passou a difusa e fragmentada; de espaço legível e estruturado, passou a ser um campo de forças organizado por novas mobilidades e espacialidades; de contrária ou híbrida do ?rural?, passou a ser um transgénico que assimila e reprocessa elementos que antes pertenciam a um e outro; de organização estruturada pela relação a um centro, passou a sistema de vários centros; de ponto num mapa, passou a mancha, etc., etc. A densidade de aglomeração e de inter-relação já não significa necessariamente aglomeração física de edificado, emprego, população, ou infra-estrutura. A acessibilidade, a velocidade, a conectividade e a mobilidade, podem realizar-se em superfícies extensas percorridas pelo zapping mais ou menos intenso entre pessoas, bens e informação. Insustentável, dirão muitos.
A estrada-rua é um dos elementos mais legíveis da estruturação da urbanização extensiva. Num país histórica e profundamente deficitário em infra-estruturação e que só teve auto-estradas e vias rápidas na década de 90, era de esperar que a dinâmica de crescimento do pós-guerra tivesse que produzir edificação algures. As estradas e o que nelas havia (electricidade e telefone, quando calhava) eram o suporte mínimo dessa edificação com acesso garantido. É isso que explica e não os bodes expiatórios do costume: especulação, défice de planeamento (no antigo regime, havia só uns planos para uns bocados de cidades e pouco mais), ilegalidade (ou a-legalidade?). Compactar tudo isto na conversa do ?feísmo? torna a realidade ainda mais opaca e indiscernível.
Com a banalização e a democratização do automóvel, ficou garantida a fluidez desta urbanização linear onde tudo se mistura: casas, cafés, restaurantes, lojas, serviços, fábricas, (...). O edifício-montra (onde se expõem automóveis, móveis, plantas, etc.) ou a casa unifamiliar com uma actividade comercial no rés-do-chão, são exemplos comuns da diversidade tipológica e funcional de tudo quanto aparece pela estrada fora. A sinalética que tudo indica, desde os sinais de trânsito, aos endereços electrónicos do que está na terceira rotunda à esquerda, foi a última a chegar, sem a espectacularidade dos néons de Las Vegas mas com recursos de criatividade inusitados.
A estrada-rua é como um centro em linha, uma corda onde tudo se pendura; uma estrada-mercado. O problema da estrada rua é a fímbria de espaço que está entre o asfalto e os edifícios: valeta, passeio, ausência de um e de outro, estacionamento, rampas de acesso a edifícios e lotes, interrupções, problemas. A estrada-rua nem tem aquelas magníficas árvores que dantes havia e depois se fechavam em túneis de floresta-galeria, nem tem os passeios amplos e confortáveis que é suposto as ruas terem. Na estrada-rua não há apenas trânsito de passagem como na estrada, nem movimentos locais de peões e veículos como na rua. A estrada-rua mistura tudo num conflito permanente, camiões e peões, carros e autocarros, motorizadas e patins em linha, cruzamentos com outras estradas. Há quem simplesmente passe e há quem queira sair e entrar, estacionar ou atravessar a estrada. Rápida de mais para quem lá vive, lenta e congestionada para quem lá passa. Um desassossego que não se resolve com passadeiras, semáforos, multas, rotundas e outros truques de acalmia de tráfego. Quando a Rua da Estrada Nacional apanha com uma via de ligação a uma auto-estrada, uma Avenida da Variante (já existe!), tudo se complica. Continua-se a estar perto de quem antes se estava e a minutos de muito mais. É como se um buraco negro, verdadeiro atractor de matéria, viesse perturbar a física quotidiana, e o tempo e o espaço se comprimissem em ânsias de energia e velocidade.







Na história longa das cidades só havia homens, cavalos e carros de cavalos. Agora podem existir mais de duzentos cavalos num motor de um só automóvel e há mais quem hoje tenha automóveis do que antes os que tinham cavalos. São mudanças a mais para que as cidades sejam como eram. Circular é viver com mais ou menos CO2 até que nem isso saia dos escapes dos automóveis e o problema seja só de carros, muitos carros e muitas estradas.

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